“Meu nome é Jin.”
“Filho de Ragan, o chefe de Eres — um vilarejo pequeno, cercado por florestas densas e campos de trigo dourado. As colinas suaves protegiam a vila como braços de um gigante adormecido. Era um lugar onde o tempo parecia desacelerar, onde o cheiro do pão fresco e o som das risadas bastavam para preencher o dia.”
“Naquele tempo, eu achava que a vida seria sempre assim. Que o mundo terminava nas fronteiras do nosso vilarejo, e que meu maior problema era ser apenas... o segundo melhor.”
...
Acordava cedo, antes mesmo dos galos. O céu ainda estava escuro quando Jin saía para o pátio, esfregando os olhos e vestindo sua túnica fina, já manchada pelas sessões anteriores. Seu pai, Ragan, já o esperava.
— A força não vem do talento, Jin. Vem da disciplina. — dizia ele, firme, enquanto entregava uma espada de madeira ao filho.
— Mas Kael...
— Kael é Kael. E você é você. Agora, postura!
O treino começava com estocadas simples, movimentos repetidos dezenas de vezes. Ragan não era gentil nos ensinamentos. Cada erro custava uma correção ríspida. Cada acerto, apenas um leve aceno de cabeça.
— Mantenha os pés firmes! Vai cair de novo assim... — dizia, desviando facilmente um golpe de Jin e o derrubando no chão.
Jin se levantava, esfregando o braço ralado, os olhos ardendo.
Não chorava. Nunca na frente do pai.
Mas o que mais doía... era ver Kael, de longe, treinando com os guardas da vila — os movimentos dele eram rápidos, precisos, quase graciosos. Ele ria enquanto lutava, como se tudo fosse fácil.
E todos o olhavam com admiração.
“Um dia vou ser melhor que você...” Jin pensava, os punhos cerrados.
À noite, quando o sol tingia o céu de laranja, a família se reunia ao redor da mesa. Lira servia pão de mel quente, colhido da receita de sua avó.
— Eu tive que afastar Jin da cozinha hoje, — disse ela com uma risada leve — ou não ia sobrar farinha pra massa!
— Não é verdade! — Jin retrucou, mas o rosto estava vermelho.
Kael apenas sorriu.
— Amanhã deixo você fazer o pão. Sozinho. A gente vê no que dá. — brincou ela, piscando.
Todos riram. Até Ragan.
Foi uma noite tranquila...
A última.
...
O dia seguinte se deu início da mesma forma.
Era uma tarde fria, mas diferente.
O vento parecia conter a respiração.
Jin treinava no campo ao sul, socando um velho tronco com raiva. Havia discutido com Kael mais cedo, cansado de sempre ser tratado como “o pequeno”.
— Um dia eu vou ser melhor que você... — murmurou ao tronco, ofegante.
Suas mãos já pingavam sangue, mas seus olhos ainda mostravam o mesmo empenho de sempre.
O céu estava limpo.
Até escurecer de repente.
Uma nuvem negra começou a surgir do chão, e não do céu — como fumaça viva, rastejando pelos campos. As aves fugiram em silêncio. E então vieram os gritos.
Longos. Aflitos.
Ele deixou a espada cair e correu.
A fumaça já invadia os caminhos de Eres. Chamas brotavam das casas, como se surgissem do nada. Crianças choravam. Corpos no chão. A poeira cheirava a sangue.
E então... ele o viu.
Bouros.
Uma criatura colossal, feita de sombras densas e olhos rubros como brasas. Seus chifres curvavam-se para trás, e ele caminhava com uma tranquilidade demoníaca, como quem passeava entre formigas.
Jin parou.
Congelou.
Ragan surgiu correndo com sua espada manchada. Estava ferido, sangrando. O olhar — como fogo.
— JIN! FIQUE LONGE! — berrou. — LEVE SUA MÃE! FUJAM!
Mas Jin não respondeu.
Não conseguia.
Kael apareceu ao lado do pai. Ergueu sua lâmina reluzente, a armadura reluzindo sob a luz das chamas.
— Fique com a mãe! — gritou ele.
E correu de encontro ao monstro.
Jin não correu.
Não lutou.
Não gritou.
O tempo pareceu desacelerar. As sombras se arrastavam como serpentes. Os sons eram abafados, como se ele estivesse debaixo d’água.
Lira surgiu e o agarrou.
— Meu filho, escute... — sua voz tremia, mas ela sorria — vai ficar tudo bem. Você vai sobreviver.
Ela o puxou, tentando afastá-lo.
Mas o chão tremeu. Bouros se aproximava.
Um golpe de sombra foi lançado contra eles — rápido demais.
Kael o empurrou. E o golpe acertou ele.
Jin caiu de joelhos.
E Kael... caiu ao seu lado.
A armadura quebrada. Sangue escorrendo. Os olhos, ainda abertos.
— Jin... — murmurou, com dificuldade. — Cuida... deles...
E aquilo foi seu último suspiro.
Ali, ao seu lado.
Jin não conseguia respirar.
Ele odiava o irmão... Ele era tudo que Jin desejava ser, forte, rápido, confiante... E Jin. Um garoto assustado. Mas no fundo Jin o admirava...
E então sentiu os braços de sua mãe o envolverem.
Outro golpe... atingiu Lira nas costas. Ela cambaleou, caiu de joelhos, mas segurou o rosto de Jin com ambas as mãos.
Seu sangue manchava a roupa do filho.
— Olha pra mim... — sussurrou.
Ele chorava. Tremia.
— Você é mais forte do que pensa. Você... tem o coração do seu pai... e a luz do seu irmão...
Ela sorriu.
— Vai ficar tudo bem...
Seus braços fora perdendo a força, e lentamente seu corpo deslizava, Jin impediu que sua mãe chegasse ao chão...
E ali mesmo... ela morreu em seus braços.
Com um sorriso nos lábios, e algumas lágrimas em seus olhos.
Jin ficou ali. De joelhos. O corpo da mãe em seus braços. O sangue de se irmão espalhado ao lado.
E ele tremeu.
E chorou.
E então algo rachou dentro dele.
O eco da culpa gritava em seu peito
O corpo de Lira ainda estava em seus braços.
Esfriando cada vez mais.
Silencioso.
O sorriso em seu rosto, mesmo na morte, cortava Jin com a delicadeza brutal de uma lembrança feliz em meio ao inferno. Como ela podia sorrir? Como...?
Ao lado, Kael jazia com a cabeça apoiada em uma pedra rachada. Seus olhos haviam se fechado com o último suspiro, e a espada que não saia de sua mão ainda reluzia, partida, como um símbolo de bravura e desespero.
Jin não se mexia. Não falava.
Ele se desfazia por dentro.
Até ouvir um som seco.
O corpo de seu pai sendo arremessado contra uma parede de pedra.
— Pai...? — murmurou.
Ragan caiu de joelhos, cuspindo sangue. Sua armadura estava estraçalhada, o rosto ensanguentado, e o braço esquerdo pendia como um galho quebrado.
Bouros caminhava até ele. Devagar. Um borrão preto, uma sombra viva com olhos como carvões em brasa.
Ragan ergueu a cabeça, mesmo com o rosto tomado pela dor. Ele já havia aceitado seu destino, e ecolheu morrer de cabeça erguida.
Seus olhos se deleitaram levemente para o lado e ali ele viu...
Jin tentando ficar de pé.
As sombras ao redor tremiam como folhas num vendaval. Um sussurro antigo, parecia ecoar entre os destroços, como se o mundo prendesse a respiração.
E então uma memória passou pela mente de Jin.
De seu avô, Marcus, um antigo aventureiro, que lutou em grandes conflitos, mas ninguém lembrava de seu nome. Certa vez, contando-lhe uma história junto à lareira, enquanto a mãe assava pão de mel ao fundo.
> “Existem alguns humanos que chamamos de seladores, Jin. Eles nascem marcados. Mas o selo não vem de graça.”
> “O preço?” Jin havia perguntado, curioso.
> “Sentir. Rir. Amar. Sofrer. Tudo isso se torna... cinza. Para manter monstros longe do mundo, é preciso trancá-los em algo maior do que eles: o coração. Mas nem todo coração aguenta.”
Jin olhou para as sombras ao seu redor. Elas não o atacavam. O reverenciavam, como se ele merecesse ser reconhecido.
E então... ele entendeu.
Bouros podia ser selado.
Mas só se Jin entregasse tudo.
Todas as emoções. Todos os risos com sua mãe, as provocações com Kael, os abraços do pai... O medo. A dor. O amor.
Tudo.
A adaga da mãe, caída ao seu lado, brilhava fracamente. A prata de coração, que lhe foi entregue por seu pai Marcus dizendo ser um símbolo de proteção.
Jin a segurou.
Calor começou a percorrer seu corpo.
Seus olhos ficaram quentes, o suficiente para suas lágrimas saírem como vapor.
E então...
Fincou no próprio peito.
O sangue escorreu. As sombras pulavam, dançavam e pareciam gargalhar mesmo sem ter rostos.
Bouros rugiu.
Mas não escapou.
Olhou para o garoto com fúria, mas segundos antes de ser puxado, sorriu... Um sorriso capaz de assustar o mais experiente dos aventureiros...
Foi tragado. Puxado para dentro do selo, costurado ao peito de Jin com os fios invisíveis de um coração despedaçado.
Jin caiu de joelhos, arfando. O mundo ao redor ficou... mudo. Como se o vento não se atrevesse a soprar.
Ele se ergueu, cambaleante, e correu.
Cambaleou entre os destroços, entre os escombros do que fora seu lar.
E encontrou seu pai.
Ragan ainda respirava. Fraco. Muito fraco.
— Pai... — sussurrou Jin, caindo de joelhos ao lado dele.
— Jin...? — Ragan abriu os olhos com esforço. — Eu disse que você era forte... — com um sorriso orgulhoso no rosto.
Jin o abraçou.
E chorou.
As lágrimas escorreram por seu rosto sem que ele entendesse como. Se o sacrifício havia levado suas emoções, como ainda doía tanto?
— Me desculpa... me desculpa... eu não fui rápido o bastante, não fui forte o bastante... — a voz falhava, rouca, entre soluços.
Ragan tentou sorrir. A mão ensanguentada tocou o rosto do filho. E então caiu, sem força.
Jin gritou.
Gritou como uma criança perdida, como um filho arrancado do mundo. Como alguém que não sabia mais onde terminava a dor e começava o vazio.
E então...
Uma lembrança.
Suave. Doce. Um momento simples. A mãe, em um dia chuvoso, enxugando seu rosto com um pano florido.
> “É impossível alguém não sentir emoções, Jin.”
“Mas e se eu ficar bravo pra sempre?”
“Até isso é uma emoção, meu amor. Uma lágrima... um pequeno sorriso... já são emoções.”
E naquele instante, uma última lágrima solitária escorreu pelo rosto de Jin.
O selo podia tirar o que ele sentia... mas não podia apagar o que ele amava.
Seu corpo desabou sobre o peito de Ragan.
E, envolto por ruínas, morte e sombras silenciadas, Jin adormeceu uma última vez nos braços de seu pai... morto.